PÉ-DE-PERFUME, de Olinda Beja, breves notas de leitura, por Regina Correia

Olinda Beja (Guadalupe, S. Tomé e Príncipe, 12.02.1946 –) diz que “escreve livros, conta e canta histórias sempre que o seu coração lhe pede” e que “a busca por inspiração inclui viagens, vivências, observações e a herança de uma tradição oral de seu povo que atravessa gerações.” Leia-se, a propósito, na p.12: “Contar tua estória, menino d’ôbô, é atravessar a ilha de uma ponta à outra como quem atravessa o mundo. É falar com novos e velhos, inexperientes e sábios, calcorrear caminhos do mato e praias de areia fina, inventar luas e sóis errantes, ondas de prata, búzios sem concha. Depois ficar à espera que o som do teu nome se dilua no emaranhado das lianas e do pau-gunu”. (Menino D’Obô, p.12).

Olinda Beja respira São Tomé e Príncipe a cada batida do coração. Por amor imenso à terra, sua vida tem sido dedicada à pesquisa apurada da realidade histórica, sociológica, cultural, linguística do seu país e a derramar ou a transfigurar essa realidade na escrita em prosa e na poesia, em recitais, em conferências.

Suas inúmeras obras literárias, vinte e duas, ao todo, distribuídas pelo romance, conto, poesia e pelo género infanto-juvenil, aparecem perpassadas por magia de forças ocultas em lendas e mitos, pela tragédia da escravatura, do trabalho forçado e dos maus-tratos infligidos pelo chicote impiedoso dos capatazes e das autoridades coloniais aos contratados nas roças de cacau, de café, de banana. Neste sentido, realça-se amiúde, como no caso de “Pé-de-Perfume”, o destino desumano de escravos levados para o Brasil pelos senhores dos engenhos como o de tantos cabo-verdianos, angolanos, moçambicanos, enfim, irmãos oriundos de outras paragens de África que a mão implacável escravocrata e do jugo colonial fez aportar às Ilhas.

Emparceirando com cenários fugazes de contentamento, há nos textos de Olinda Beja nota extensa de tons sombrios, sem se esquecer as consequências desfavoráveis para o tecido social, da poligamia masculina, da violência de género e de abusos sexuais sobre mulheres e crianças. Do riso breve ou longo às duras lágrimas e pesada dor, tudo retrata a escritora, com reconhecido engenho literário, em suas obras de ficção ou poéticas.

O leitor deixa-se levar pela correnteza verbal da qual emerge o quotidiano sofrido de vidas santomenses marcadas pelo arco-íris do tempo que as resgata à sombra de um passado em anonimato, quase sempre. Gente simples, coisificada, abandonada à sua pouca ou nenhuma sorte, adquire dimensão humana e passa a ocupar lugar de destaque na cronologia mátria, através da voz militante de Olinda Beja.

É o caso da obra que nos trouxe hoje aqui e que já vai na 4ª edição – “Pé-de-Perfume”, um livro de contos, agora reeditado pela Nimba Edições. Aproveitamos para dar os parabéns ao editor Luís Vicente por sua aposta numa autora desta envergadura de excepção, desejando-lhe os maiores sucessos editoriais.

No Preâmbulo do livro é a própria autora que afirma: “Após o vaguear pelos contos da minha santomensidão, gostava que deles ficasse a fragrância incomparável da terra quente, uma terra impregnada de cheiros e sabores, espreguiçada por palmares dendém e coqueirais sem fim, terra de fluidos e quimeras onde afinal tudo não passa de um prelúdio”.

Não tenha Olinda Beja nenhuma dúvida de sua importância nuclear como embaixadora da cultura e da língua de São Tomé e Príncipe no mundo, uma vez que a história e as estórias do Arquipélago narradas nos livros de sua autoria chegam a países dos diversos continentes, pela sua tradução para as principais línguas europeias e ainda para árabe, mandarim, japonês, russo ou esperanto. Algumas destas obras de ficção ou poéticas são estudadas em universidades ou escolas secundárias do Brasil, Goa, Luxemburgo e integram planos nacionais de leitura, como no caso português. Paralelamente, a autora, várias vezes premiada, participa, frequentemente, em eventos culturais e literários do mundo, sobretudo no Brasil, praticamente, sua segunda casa, onde conta, canta e encanta, qual griot contemporâneo, divulgando a língua e as tradições das Ilhas Maravilhosas. Sublinhe-se aqui sua presença na Exposição Mundial do Dubai, em Novembro de 2021.

As estórias de “Pé-de-Perfume”, marcadas fortemente pelo cunho da tradição africana da narração oral, são transversalmente habitadas por Poesia, ou não fosse Olinda Beja uma grande poeta!, seja na função da linguagem, nas imagens sugeridas pelo desenho dos cenários ou pela postura dos personagens. Leia-se, a título de exemplo: “Todas elas meninas de encantar! Olhos de sereia, bocas de vento, braços de partida e de chegada… gestos de mar em acenos fugazes à linha parada do horizonte.” (pgs.35/36 – A lenda da praia das sete ondas)

Ao mesmo tempo, os contos curtos são encabeçados por epígrafes proverbiais nas duas línguas, santomense e portuguesa, como que anunciando uma lição final das estórias que assumem, assim, muita vez, o perfil de fábulas. A certos animais marinhos ou terrestres emblemáticos do arquipélago são atribuídos traços de carácter humano, mais ou menos positivos. Por exemplo, a tartaruga, o gandu, o papagaio, o falcão, a lagaia, podem manifestar fraternidade, solidariedade, inteligência, perspicácia, mas também ganância, autoritarismo, inveja ou ingratidão.

Beja entremeia os textos com vocábulos e expressões da língua santomense, mais uma das marcas da sua escrita, numa afirmação constante e definitiva de santomensidão, deixando ao mundo glossários que estabelecem a afirmação de uma língua mestiça, crioula. Recorde-se seu poema “Santomensidão”, do livro “Água Crioula”:

Santomensidão

O poema está no ritmo

do nosso sangue cruzado. Na idade

da nossa santomensidão…

cheiros de terra quente

palmares de avó Sipinge

distância em distância entre

o leste e o oeste

o norte e o sul

o poema

é a única rota que deixa sulcos no cais

imensurável dos nossos atropelos

Ao lermos “Pé-de-Perfume”, realizamos uma viagem pela historicidade de S. Tomé e Príncipe. Através da cerzidura de um painel social e popular de hábitos, usos, costumes e tradições em que sobressai o quotidiano das suas gentes estampado na magia da palavra, a autora enfatiza lendas e mitos da terra, num exercício de multi-e-interculturalidade que traz à superfície do presente a mestiçagem genética, linguística e cultural do passado acentuada pelas particularidades da insularidade.

Como noutros textos de Olinda Beja, deparamo-nos, nesta obra, com uma escrita muito visual, parecendo que as palavras têm cor, cheiro, movimento. Desenrola-se ante nossos olhos maravilhados um bailado entre humanos, fauna e flora das Ilhas, ao som das ondas do mar, a coberto da mão prodigiosa da noite e dos curandeiros destapando antigos feitiços. E mesmo nas estórias mais abertas à claridade há um quê de fatalidade no ar que irá dar corpo a um remate trágico ou insólito.

Este é um livro irresistivelmente sedutor, pela palavra perfumada de Olinda Beja, tão olorosa como a flor amarela da árvore ylang-ylang que fez do tartarugueiro Baltasar Gógó um “pé-de-perfume” desejado pelas raparigas, no último conto que dá o título à obra.

Regina Correia

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